2/10/2022

Entrevista ABA: “olhar para os resíduos como matéria-prima é o que permitirá alcançar a neutralidade carbónica”

Em 2019, surgiu a ABA, a associação com a ambição de promover a Bioenergia Avançada, que, à data, dava os seus primeiros passos.

Dois anos depois, já eram treze os associados, desde pessoas com um currículo vasto na área a empresas, como a Bioport, EBA, Eco-Oil, EcoMovimento, EWABA, Planetiers, Preco, Prio, Reciclimpa, Resiway, Galp e EGI. Atualmente, a ABA reúne importantes operadores nacionais, produtores de biocombustíveis avançados, de combustíveis reciclados e de gestão de resíduos, bem como associações europeias na área da bioenergia avançada e entidades que promovem a sustentabilidade. 

Para conhecer melhor o trabalho da Associação da Bioenergia Avançada nos últimos anos e entrar em detalhe nas conquistas que celebram no início de 2022, falámos com Ana Marisa Calhôa, Secretária-Geral da ABA.

Como evoluiu o setor da bioenergia avançada nos últimos anos?

Ana Marisa Calhôa: o setor da bioenergia avançada tem evoluído muito positivamente nos últimos anos. Observamos esta evolução nos nossos associados, cujo crescimento tem sido, não só em volume de negócios, mas também em capacidade de recolha, de tratamento dos resíduos, e de produção de produtos energéticos, quer sejam biocombustíveis de resíduos e outros avançados ou combustíveis reciclados, por exemplo.

O desenvolvimento da tecnologia também tem permitido aumentar a abrangência de tipologias de resíduos que os associados conseguem tratar. Quando muitas delas surgiram, em Portugal ainda não se utilizava este biodiesel produzido a partir de resíduos e o combustível reciclado ainda era um mistério.

Além disto, notamos, também que, cada vez mais os decisores estão alerta para a importância de um mix energético, do qual a bioenergia avançada faz parte. Com o tempo, vai-se desvanecendo a ideia de que o futuro pode passar apenas por uma fonte de energia renovável e vai ganhando força a solução de união de todas as alternativas verdes.

Existe, em Portugal, capacidade instalada para ir além das metas definidas?

AMC: Sim.  Atualmente, a indústria instalada ainda não está a utilizar a sua capacidade máxima.  Existe muito potencial para colocar à disposição do país e para servir o setor dos transportes. Com a subida da metade incorporação de energia renovável nos transportes, acredito que o aparelho refinador aumente também as quantidades produzidas durante os próximos anos. Perspetiva-se a continuidade crescente relativamente ao aparecimento de novas matérias-primas avançadas e que os níveis de incorporação continuem a aumentar. Existem também diversos projetos a serem desenvolvidos, ainda em fase de avaliação, sendo provável que venham a nascer novas fábricas de bioenergia, o que tornará esta indústria ainda mais capacitada para descarbonizar, cumprir metas e reduzir cada vez mais a dependência energética de Portugal.

A incorporação de biocombustíveis nos transportes tem demonstrado a capacidade da indústria nacional na produção de biodiesel e HVO. Em 2020, Portugal processou óleos alimentares usados muito acima da referência de 1,7%, tendo até superado os 3% (o que, com a dupla contagem, contribui em mais de 60% da meta global de 10% de renováveis no transporte que foi atingida). É, portanto, essencial não voltar atrás ao limitar esta meta.

A bioenergia avançada é essencial para ajudar Portugal a cumprir as metas que assumiu junto da União Europeia. Para isso é necessário que esta indústria seja apoiada e estimulada. Assim conseguimos que Portugal seja uma referência na construção de uma fileira real de transição energética verdadeiramente sustentável e capaz de fazer cumprir os objetivos da EU.

O que foi o ano de 2021 para a bioenergia avançada?

AMC: A grande evolução que 2021 trouxe, segundo os dados disponibilizados, foi o aumento do contributo das matérias-primas residuais para a produção de biocombustíveis. No último ano, cerca de 70% das matérias-primas utilizadas na produção de biocombustíveis eram de origem residual, das quais 10,4% avançadas. Este aumento é muito relevante porque significa que Portugal está alerta para a importância da economia circular e da valorização dos resíduos. Significa também que o aparelho refinador se está a adaptar e que é possível ter metas de incorporação de biocombustíveis residuais mais ambiciosas. Estamos confiantes de este valor tem margem para crescer ainda mais durante este ano.

Além desta conquista, sinalizaria também as medidas que revelaram o reconhecimento da bioenergia avançada como um dos setores que mais contribui para a descarbonização. Em 2021 entrou em vigor a isenção do ISP para os biocombustíveis avançados, uma medida prevista no OE2021, e foi posta em prática a meta mínima obrigatória de 0,5% de incorporação destes biocombustíveis.

Outro passo importante foram as restrições à produção e ao comércio de biocombustíveis a partir de óleo de palma, impostas já no dia 1 de janeiro de 2022 e que são um sinal de que o futuro se fará com a ajuda da economia circular e da valorização de resíduos e outras matérias-primas avançadas.

Para a associação, o ano de 2021 foi, também, muito positivo. Demos as boas-vindas a cinco novos associados, divulgámos o primeiro relatório semestral do setor e reunimos esforços para colocar a bioenergia avançada na agenda mediática - e conseguimos. Desenvolvemos os canais e conteúdos para partilhar com a sociedade a importância do impacto do setor e, através da comunicação social, explicámos o contributo da economia circular, dos resíduos e das matérias-primas avançadas para a descarbonização da mobilidade e da indústria e para alcançar a independência energética.

Quais considera serem os maiores obstáculos ao crescimento da indústria?

AMC:  Este ano deverá acontecer a transposição da RED II, Diretiva das Energias Renováveis II, publicada em dezembro de 2018 pela União Europeia.

Esta atualização do quadro legislativo foi muito positiva para o ambiente e assinalou um ponto de viragem na validação dos biocombustíveis como parte essencial da estratégia de descarbonização dos transportes na Europa. No entanto, levantou questões relativas ao sistema de metas e limites estabelecido para a utilização de diferentes tipos de energias renováveis nos transportes.

Consideramos que a transposição desta Diretiva é um momento decisivo para Portugal se posicionar no caminho que quer fazer rumo à neutralidade carbónica. Isto porque a RED II define metas de energias renováveis no consumo final de energia conservadoras e até limitativas à introdução de misturas mais ricas (B+) no consumo nacional e que põe em causa uma conquista da indústria.

Por exemplo, enquanto a REDII define em 14% a quota de incorporação mínima de energia renovável no consumo final de energia nos transportes para 2030, em Portugal esta meta é já de 20%, segundo o Plano Nacional de Energia e Clima e de 24%, segundo o Green Deal. Assim, a transposição desta medida pode representar perdas no potencial da indústria nacional e um retrocesso para Portugal. Defendemos que este valor deveria ser mantido como meta mínima de incorporação, sendo que 3,5%, no mínimo, serão biocombustíveis avançados.

Num outro caso, a Diretiva defende que a incorporação dos biocombustíveis avançados e de biogás, produzidos a partir de matérias-primas do anexo IX parte A, deve ser de pelo menos 0,2% em 2022, pelo menos 1% em 2025, e de, pelo menos, 3,5% em 2030. No entanto, tendo em conta a urgência climática, Portugal, em 2020, estabeleceu em 0,5% a meta de incorporação de biocombustíveis em teor energético, impulsionando mudanças significativas. Se já concretizámos esta meta, porque não incentivar metas ambiciosas para os biocombustíveis avançados no futuro?

A RED II prevê ainda a continuação e reforço dos incentivos, mas afirma que a quota dos biocombustíveis sustentáveis deve ser limitada a 1,7% do teor energético dos combustíveis para transportes destinados ao consumo ou utilização no mercado. Este limite representa um retrocesso muito significativo na transição energética, uma vez que, em Portugal, a integração dos biocombustíveis sustentáveis já se situa acima dos 3% e a tendência deve ser de crescimento. Assim, a isenção do CAP deve fazer parte da estratégia nacional para a contínua evolução do setor, tal como definido no seu Plano Nacional de Energia e Clima 2030.

Outro dos obstáculos, que tem sido, também, uma das vitórias do setor é a manutenção do regime de dupla contagem, fundamental para efeitos de demonstração do cumprimento das quotas mínimas de incorporação de biocombustíveis de resíduos e outros avançados. Este é o principal mecanismo de promoção de políticas que garantem a presença de biocombustíveis produzidos a partir de matérias-primas residuais, tendo sido uma ferramenta muito eficaz na garantia de recolha, tratamento e transformação de biocombustíveis, que reduzem significativamente a emissão de gases com efeito de estufa.

Países como a Holanda, França, Alemanha e Áustria, por exemplo, consideram este regime um caso de sucesso, mas apesar de muitos terem optado por este incentivo, poucos se podem orgulhar de ter tido resultados tão positivos como Portugal. Atualmente, mais de 60% dos biocombustíveis sustentáveis produzidos no país são sujeitos ao regime de dupla contagem, responsável pela redução de 649 mil toneladas de CO2 (face à utilização de gasóleo).

Caso não o façamos, corremos o risco de ficar para trás em termos de desenvolvimento económico, tecnológico e social, continuando a utilizar óleos vegetais com elevados riscos ambientais, perdendo potencial de transição energética e dificultando o cumprimento das metas da UE.

Como imagina a mobilidade em Portugal nos próximos cinco anos?

AMC: Daqui a cinco anos espero já não estar a falar da importância de um mix energético ou do potencial da bioenergia avançada para a descarbonização dos transportes e da economia. Espero que tudo isto já esteja presente na mente de todos.

Nessa altura estaremos já a poucos anos de alcançar a meta definida por Portugal de reduzir, até 2030, pelo menos, 55% as emissões de gases de efeito de estufa e sabemos que isso só será possível com recurso ao mix energético deque falamos.

Assim, o que perspetivamos para o futuro é a complementaridade das fontes de energia renováveis. Acreditamos que as misturas mais ricas serão uma realidade, a par dos veículos elétricos e dos movidos a hidrogénio verde.

Não só pela sua capacidade de descarbonizar amobilidade, mas porque impactam positivamente a economia através da criação de empregos, da produção nacional, e da recuperação e valorização de resíduos.

Quando se fala em descarbonizar a mobilidade acredita-se que é preciso mudar de carro e optar por um veículo “zero emissões”. Contudo, o que observamos na realidade portuguesa é que esta transição não está ao alcance de todos e que estas alternativas, sozinhas, não conseguiriam dar resposta à procura, que é cada vez maior à medida que mais e mais países se vão desenvolvendo. Por isso, são fundamentais as soluções para os motores de combustão. E é aqui que percebemos a relevância da bioenergia avançada.

Os biocombustíveis de resíduos e outros avançados não exigem a aquisição de novos veículos ou infraestruturas, uma vez que são incorporados nos combustíveis que já utilizamos. Tornam-se, por isso, a forma mais imediata de qualquer condutor se tornar mais sustentável. Com isto, passamos à frente o passo que impossibilita a caminhada rumo à sustentabilidade de grande parte da população portuguesa.

Quais são os planos da ABA para 2022?

AMC: Em 2022,vamos continuar a caminhar no sentido de diferenciar a bioenergia avançada, para que seja incluída nos planos de descarbonização da economia de uma forma mais determinante. Queremos provar que metas mais ambiciosas e misturas mais ricas podem fazer toda a diferença na jornada para atingir a neutralidade carbónica. Este será um ano em que continuaremos a defender o setor como um todo e a demonstrar de que forma os nossos associados fazem a diferença. Acredito que cresceremos, não só no número de associados, mas também nas vertentes da bioenergia avançada.