11/25/2025

Entrevista Mota-Engil: "A bioenergia avançada deve ser considerada uma alavanca para posicionar o país como um polo de inovação e industrialização verde"

A Mota-Engil é um dos maiores grupos empresariais portugueses, com cerca de 80 anos de atividade, presença em 3 continentes e 21 países. Reconhecida pela sua atuação nos setores da engenharia, construção, concessões e ambiente, a empresa tem vindo a reforçar o seu compromisso com a sustentabilidade e a transição energética. Apostando na valorização de resíduos, no desenvolvimento de soluções circulares e em projetos ligados às energias renováveis, a Mota-Engil posiciona-se como um parceiro estratégico para acelerar a descarbonização e circularidade, apoiando o crescimento da bioenergia avançada em Portugal e a nível internacional.

Nesta entrevista, Hugo Pereira, CEO da Mota-Engil Ambiente e Energia, explica como o Grupo está a transformar resíduos urbanos, agrícolas e industriais em energia renovável — do biometano aos combustíveis avançados — impulsionando novas cadeias de valor e reforçando a autonomia energética do país:

  1. A Mota-Engil tem uma presença consolidada em áreas como ambiente, resíduos e energia. Como é que estas competências se cruzam com o desenvolvimento da bioenergia avançada?

A presença da Mota-Engil no setor do ambiente remonta a 1994, com a criação da SUMA, especializada na gestão e recolha de resíduos urbanos e industriais. Em 2015, esta atuação foi reforçada pela integração da EGF, líder nacional no tratamento e valorização de resíduos e referência tecnológica a nível europeu, com experiência consolidada na produção de energia a partir da valorização energética e do biogás em aterro. Hoje, a Mota-Engil Ambiente coordena este portefólio, cobrindo toda a cadeia de valor — da recolha à valorização orgânica e energética — com um investimento contínuo em inovação tecnológica.

Este percurso oferece-nos uma visão privilegiada sobre o papel estratégico dos resíduos na transição energética e na economia circular. Num contexto em que Portugal e a União Europeia enfrentam a urgência de reduzir a dependência energética externa e acelerar a descarbonização, a valorização de resíduos assume-se como um vetor essencial para reforçar a resiliência dos territórios, transformar passivos ambientais em recursos e gerar benefícios económicos e sociais sustentáveis.

Foi com este enquadramento que foi criada a Mota-Engil Energia, uma unidade de negócio dedicada à transição energética. Em articulação com a área do Ambiente, através da Mota-Engil Ambiente e Energia, esta unidade tem a circularidade fator de criação de valor. Através de soluções integradas em energias renováveis — tais como a solar, a eólica, a hídrica e o armazenamento — e de projetos waste-to-value como o biometano, WtE, ou eFuels, a Mota-Engil Ambiente e Energia posiciona-se como facilitadora da descarbonização e promotora de independência energética. Mais do que produzir energia, o nosso compromisso é estruturar parcerias estratégicas e desenvolver ecossistemas inovadores que acelerem a transição energética, reforcem a economia circular e criem valor a longo prazo para as comunidades.

  1. Na vossa perspetiva, qual o papel que empresas de construção e concessões podem ter na criação de infraestruturas críticas para o crescimento do setor do biometano e de outros biocombustíveis avançados em Portugal?

No caso da Mota-Engil, o contributo não se limita à construção de infraestruturas, mas centra-se na capacidade de conceber, desenvolver, financiar e operar soluções integradas que permitam acelerar a transição energética. O setor do biometano e de outros biocombustíveis avançados requer mais do que unidades de produção: exige ecossistemas de valorização de resíduos, de logística e de integração energética que sejam técnica e economicamente viáveis, bem como socialmente relevantes para os territórios onde se inserem.

É precisamente neste enquadramento que a Mota-Engil acrescenta valor. A partir da experiência acumulada do Grupo na execução de grandes projetos de infraestrutura, aliada a uma abordagem orientada para a circularidade e a independência energética, posicionamo-nos como dinamizadores de parcerias estratégicas entre produtores de resíduos, municípios, operadores de rede e investidores. O nosso papel é criar soluções que transformem fluxos subvalorizados em energia limpa, garantindo simultaneamente eficiência, segurança e competitividade.

Assim, mais do que construir, assumimos a missão de estruturar modelos colaborativos que permitam escalar o setor da bioenergia avançada em Portugal e, desta forma, reforçar a autonomia energética, promover a coesão territorial e contribuir para o cumprimento dos objetivos nacionais e europeus de neutralidade carbónica.

  1. Que oportunidades identifica a Mota-Engil no aproveitamento de resíduos urbanos, agrícolas e industriais para a produção de bioenergia?

O aproveitamento de resíduos urbanos, agrícolas e industriais representa uma oportunidade transformadora não apenas para o setor energético, mas para a economia no seu todo. A Mota-Engil identifica, antes de mais, a possibilidade de converter fluxos de resíduos até agora subvalorizados em ativos energéticos estratégicos, criando cadeias de valor alinhadas com os princípios da economia circular.

O futuro da bioenergia avançada passará por soluções integradas, capazes de combinar diferentes fluxos de resíduos em unidades flexíveis de valorização, reduzindo a pressão sobre os aterros e transformando passivos ambientais em energia renovável com impacto direto na autonomia energética do país.

Estas oportunidades não se esgotam na vertente técnica. O seu verdadeiro potencial reside na capacidade de gerar benefícios transversais: diminuir emissões, criar emprego local qualificado, atrair investimento privado e público e posicionar Portugal como referência a nível europeu. A ambição da Mota-Engil é precisamente esta.

  1. Em termos de inovação e investimento, existem projetos ou parcerias já em curso na área da bioenergia (por exemplo, biometano, hidrogénio verde ou biocombustíveis avançados)?

A Mota-Engil Ambiente e Energia encontra-se a desenvolver um conjunto de iniciativas estratégicas que refletem o compromisso do Grupo com a transição energética e a economia circular. Estas iniciativas abrangem áreas como a produção de biometano a partir de resíduos orgânicos ou industriais, a valorização energética de frações não recicláveis e a produção de combustíveis derivados de resíduos para setores industriais intensivos em energia. Fruto de projetos já em execução, contamos ser um dos primeiros produtores de biometano em Portugal, iniciando a produção ao longo do próximo ano, contribuindo para a descarbonização da rede de gás.

Contamos com um portefólio diversificado, que procura aliar tecnologia inovadora a parcerias institucionais e empresariais, com o objetivo de reduzir a deposição em aterro, aumentar a produção de energia renovável e criar alternativas competitivas aos combustíveis fósseis. Além do seu contributo para o ambiente, estas soluções geram ainda impacto local: promovem emprego qualificado, reforçam a coesão territorial e contribuem para a independência energética nacional.

Embora cada projeto tenha as suas especificidades, o que os une é a visão de futuro, a ambição de acelerar uma transição energética assente na economia circular, transformando desafios ambientais em oportunidades de desenvolvimento sustentável. Queremos contribuir para um sistema energético mais resiliente e inclusivo, onde os resíduos deixam de ser um fim e passam a ser o início de novas cadeias de valor, criando benefícios duradouros para as comunidades e para o país.  

  1. A descarbonização dos transportes é um dos grandes desafios da década. Como é que a Mota-Engil, enquanto empresa também ligada à área da mobilidade e concessões rodoviárias, vê a integração dos biocombustíveis avançados neste setor?

A descarbonização da mobilidade exige uma abordagem integrada, em que diferentes soluções energéticas se complementam consoante as especificidades de cada segmento. Se a eletrificação tem um papel central nos veículos ligeiros, os biocombustíveis avançados, em particular o biometano e os combustíveis derivados de resíduos, assumem-se como alternativas imediatas e eficazes para os transportes pesados, coletivos e de longa distância, onde a eletrificação integral continua a enfrentar barreiras técnicas e económicas.

O Grupo Mota-Engil tem vindo a desenvolver esta visão de forma estruturada. Por um lado, através da Mota-Engil Ambiente e Energia, que aposta em soluções waste-to-value capazes de transformar resíduos em combustíveis limpos. Por outro lado, através da Mota-Engil Capital, que, com a Remo Powered by Mota-Engil, explora modelos de mobilidade inovadores, orientados para a eficiência energética e a descarbonização do setor dos transportes. Esta articulação permite-nos não apenas produzir energia renovável, mas também aplicá-la diretamente em soluções de mobilidade sustentável, ajustadas às necessidades específicas de cada território.

  1. Portugal começa agora a estruturar um enquadramento regulatório para o biometano e outros vetores renováveis. Na sua opinião, que medidas ou incentivos poderiam acelerar a viabilidade destes projetos?

Portugal dispõe hoje de um enquadramento estratégico mais claro, com o Plano de Ação para o Biometano e a transposição em curso da legislação europeia. No entanto, para que este potencial se traduza em projetos concretos, é essencial assegurar estabilidade regulatória e mecanismos de apoio ajustados à realidade do setor.

Do nosso ponto de vista, destacam-se algumas prioridades: a necessidade de incentivos claros ao investimento inicial (CAPEX), que permitam ultrapassar as barreiras de entrada num mercado ainda embrionário; a criação de instrumentos que dinamizem um verdadeiro mercado, formalizando a obrigação de incorporação deste produto na indústria, sem subsidiação, e aumentando a confiança dos investidores e financiadores, ao mesmo tempo que fomenta a competitividade entre operadores e tecnologias. Acrescento ainda a clarificação dos processos de licenciamento, que continuam a ser um dos principais entraves ao avanço dos projetos.

É igualmente decisivo garantir que todos os fluxos de resíduos — urbanos, agrícolas e industriais — possam ser aproveitados em projetos de biometano, assegurando escala e viabilidade económica. A exclusão de determinados fluxos comprometeria a competitividade do setor e atrasaria a sua consolidação.

Consideramos igualmente essencial assegurar prioridade de injeção para os projetos de gases renováveis face às restantes tipologias, uma medida simples de implementar e que garante acesso efetivo à rede para a produção nacional de biometano, reforçando a descarbonização e reduzindo a dependência energética externa.  

Em última análise, trata-se não apenas de acelerar projetos no curto prazo, mas de criar as condições para a maturidade do mercado, assegurando que o biometano se consolida como um pilar estratégico da transição energética em Portugal.

  1. A Mota-Engil está presente em vários mercados internacionais. Como avaliam a evolução da bioenergia fora de Portugal? Existem modelos de referência que poderiam ser aplicados no contexto nacional?

A evolução da bioenergia na Europa demonstra que o biometano já não é apenas uma aposta de futuro, mas uma realidade consolidada em vários mercados. Países como a Alemanha, os Países Baixos ou a Dinamarca conseguiram criar enquadramentos regulatórios estáveis, que proporcionaram previsibilidade aos investidores e estimularam a procura através de metas vinculativas de incorporação, contratos de longo prazo e prioridade de injeção. O resultado é visível: uma escala de produção significativa, maior liquidez de mercado e integração efetiva do biometano no setor energético, industrial e dos transportes.

Portugal pode e deve aprender com estes modelos, mas sem os replicar de forma mecânica. O nosso contexto é distinto — tanto em termos de disponibilidade de feedstock como de maturidade do mercado — e exige soluções próprias. Temos um potencial elevado, mas a sua concretização depende da mobilização de setores estratégicos e da realização de investimentos significativos em infraestruturas de produção, distribuição e consumo. É um desafio sistémico que não se resolve apenas com incentivos pontuais, mas com uma estratégia integrada que abranja toda a cadeia de valor, desde a origem dos resíduos até ao consumo final.

Neste quadro, o Plano de Ação para o Biometano traduz para Portugal as diretrizes europeias e define uma trajetória progressiva para 2040. O plano propõe medidas concretas, como, por exemplo, a criação imediata de um mercado interno e de um enquadramento regulatório ágil, bem como a diversificação tecnológica — com destaque para soluções de gaseificação e utilização do CO₂ biogénico — e a consolidação de novas cadeias de valor, incluindo resíduos florestais e outras matérias residuais.

Mais do que importar “modelos”, o verdadeiro desafio para Portugal é transformar esta agenda numa oportunidade de soberania energética e de competitividade económica. A bioenergia avançada, e em particular o biometano, não deve ser vista apenas como um vetor de descarbonização, mas como uma alavanca para modernizar setores, reduzir a dependência externa e posicionar o país como um polo de inovação e industrialização verde no contexto europeu.

  1. Sustentabilidade e critérios ESG têm hoje um peso decisivo no financiamento e na competitividade das empresas. De que forma os projetos ligados à bioenergia se enquadram na vossa estratégia de sustentabilidade e responsabilidade ambiental?

Hoje, as classificações ESG deixaram de ser apenas uma métrica subjetiva inserida em relatórios corporativos para se afirmarem como determinantes para a competitividade, o acesso a financiamento e a confiança dos stakeholders. Por isso, a Mota-Engil valoriza o acompanhamento regular por agências internacionais como a MSCI e a Sustainalytics, que refletem a nossa performance ambiental, social e de governance e são um sinal claro para investidores, parceiros e comunidades.

Mais do que cumprir requisitos formais ou obrigações regulatórias, tratamos a sustentabilidade como uma alavanca estratégica: uma forma de antecipar riscos, atrair investimento, diferenciar a nossa atuação e gerar valor económico e social no longo prazo. Essa visão reforça a resiliência do Grupo e alimenta a inovação, ao mesmo tempo que consolida a confiança dos nossos colaboradores e parceiros.

É precisamente neste enquadramento que os projetos de bioenergia assumem relevância. Ao transformar resíduos em vetores energéticos renováveis — do biometano aos combustíveis avançados —, contribuem de forma direta para as metas ambientais que estão no centro da agenda ESG, ao mesmo tempo que fomentam inovação tecnológica, dinamização territorial e novas oportunidades de investimento sustentável. É essa dupla dimensão, ambiental e estratégica, que consolida a bioenergia como um eixo central da sustentabilidade na Mota-Engil Energia.

  1. Para terminar: quais são os próximos passos da Mota-Engil nesta área? Que papel antevê que a bioenergia avançada possa ter no vosso portfólio de projetos até 2030?

Os próximos anos serão decisivos para consolidar a presença da Mota-Engil no setor da bioenergia avançada. A nossa prioridade imediata é acelerar a execução de projetos de biometano e de combustíveis derivados de resíduos, ao reforçar a capacidade instalada e criar soluções de valorização que respondam, em simultâneo, aos desafios da gestão de resíduos e da transição energética.

Até 2030, antecipamos que a bioenergia avançada assuma um papel estruturante no nosso portfólio, acompanhando o horizonte definido pelo Plano de Ação para o Biometano. O setor tem condições para substituir até 9% do consumo nacional de gás natural através da digestão anaeróbia de matérias-primas residuais, e contribuir diretamente para reduzir a dependência externa e para cumprir as metas de descarbonização inscritas no PNEC 2030 e no REPowerEU.

Para a Mota-Engil Ambiente e Energia, este potencial traduz-se em oportunidades concretas: colocar novos projetos em operação já nesta década, integrar tecnologias emergentes como a gaseificação e o power-to-methane e preparar a infraestrutura para uma expansão que, até 2040, poderá representar mais de 18% do consumo nacional de gás. Esta visão pragmática, ancorada em metas claras e soluções escaláveis, orienta a nossa estratégia e garante que a bioenergia se consolide como um pilar do nosso crescimento sustentável.