22/4/2022

Sustentável: "Carros “comem” 15 milhões de pães por dia em biocombustível na Europa. E em Portugal?"

Numa altura em que o abastecimento global de alimentos está sob ameaça por força do conflito em curso na Ucrânia, a Federação Europeia de Transportes e Ambiente (T&E) veio alertar que a Europa transforma, todos os dias, dez mil toneladas de trigo em etanol, para a utilização em automóveis a gasolina. Ou seja, os carros do Velho Continente andam a “comer” diariamente o equivalente a 15 milhões de pães. Já em Portugal, 76% dos biocombustíveis introduzidos no mercado não provêm de culturas alimentares e o país não importa mesmo combustível produzido a partir de trigo, explica Francisco Gírio, coordenador da unidade de bioenergia do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG).

“A utilização de culturas alimentares para biocombustíveis encontra-se severamente restrita pelas várias diretivas europeias publicadas desde 2010”, começa por salientar o especialista. Francisco Gírio detalha que não é hoje possível licenciar novas unidades de produção de biocombustível se não cumprirem um mínimo de 60% de redução de gases com efeito de estufa comparativamente com o uso de combustíveis fósseis. “Ora, dificilmente qualquer análise de sustentabilidade de uma cadeia de valor de biocombustível a partir de culturas alimentares (oleaginosas ou cereais) consegue atingir essa meta de redução, pelo que esses biocombustíveis seriam classificados pelas autoridades nacionais dos diversos Estados-membros como não sustentáveis e, na prática, ficariam excluídos do mercado”, acrescenta.

Nesse contexto, e sobre o caso particular português, o coordenador da unidade de bioenergia do LNEG sublinha que, de acordo com os boletins estatísticos trimestrais publicados pela Entidade Coordenadora para o Cumprimento dos Critérios de Sustentabilidade (ECS), mais de 76% dos biocombustíveis introduzidos atualmente no mercado nacional não provêm de culturas alimentares e o país não importa mesmo qualquer biocombustível produzido a partir de trigo. “Todos estes biocombustíveis são obtidos a partir de resíduos sem impacto no preço dos alimentos”, frisa ainda o especialista.

Já o secretário-geral da Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustível (APPB), Jaime Braga, destaca que, no universo dos biocombustíveis, os cereais são usados para fazer bioálcool, um aditivo para a gasolina, e em Portugal, destaca, não há quem o fabrique. Quanto à utilização de alimentos para este fim numa altura em que a cadeia de abastecimento está com perturbações, o responsável defende que “a notícia que tem” é a de que a situação da guerra em curso na Ucrânia veio provocar um aumento dos preços, uma vez que a oferta diminuiu. Jaime Braga salienta, contudo, que Portugal “está a conseguir o aprovisionamento” das culturas alimentares em causa. Ou seja, “o problema é o preço, não a carência”, observa.

Por sua vez, a Federação Europeia de Transportes e Ambiente aproveitou o estudo referido para apelar ao fim da transformação do trigo e de outras culturas alimentares em etanol, considerando “imoral” a pressão para o aumento da produção de biocombustíveis – em resposta à crise energética –, numa altura de escassez alimentar a nível global, por efeito das dificuldades sentidas nos sistemas de abastecimento de cereais vindos da Ucrânia e da Rússia. “Todos os anos queimamos milhões de toneladas de trigo e outras culturas para alimentar os nossos automóveis. Isto é inaceitável face a uma crise alimentar global. Os governos têm de parar urgentemente a queima de culturas alimentares nos automóveis para reduzir a pressão sobre os fornecimentos críticos”, defendeu Maik Marahrens, responsável na T&E pela área dos biocombustíveis, em comunicado.

De notar que o estudo da Federação Europeia de Transportes e Ambiente concluiu que eliminar o uso de trigo nos biocombustíveis iria compensar em mais de 20% a quebra no fornecimento de trigo com origem ucraniana resultante da ofensiva levada a cabo pela Rússia, desde o final de fevereiro.

A T&E não está, de resto, sozinha neste apelo. Em Portugal, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável já veio avisar que a indústria dos biocombustíveis está a intensificar os seus esforços de lobby para pressionar a utilização de mais cereais, como o trigo e o milho, na produção de biocombustíveis, como forma de substituir o petróleo russo. E deixou um alerta: “Mesmo que a Europa duplicasse a área de terras agrícolas que dedica aos biocombustíveis – equivalente a pelo menos 10% das terras agrícolas da União Europeia para culturas – isto substituiria apenas 7% das importações de petróleo da UE da Rússia. Para substituir todas as importações russas de petróleo por biocombustíveis produzidos internamente seria necessário utilizar pelo menos dois terços das terras agrícolas do bloco europeu para a produção de culturas para biocombustíveis”.

Esta associação ambientalista, em conjunto com a Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade (FAPAS), o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) e a Oikos – Cooperação e Desenvolvimento, decidiu, perante o quadro atual, enviar uma carta ao ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, a pedir a suspensão imediata da utilização na produção de biocombustíveis em Portugal de alimentos para consumo humano e animal. Até ao momento, o Executivo de António Costa não deu resposta a essa reivindicação, mas no que diz respeito às fontes energéticas, no debate parlamentar sobre o programa do novo Governo, Duarte Cordeiro deixou claro que é contra a reativação das centrais a carvão e apelou a uma aceleração da aposta nas energias renováveis, numa altura em que o conflito a leste está a fazer disparar os preços dos combustíveis.

Que papel têm os biocombustíveis na descarbonização?

A descarbonização é hoje uma das grandes metas do bloco comunitário, já que a luta contra as alterações climáticas tem vindo, progressivamente, a ganhar um novo tom de urgência. Nesse quadro, que papel e peso poderão ter os biocombustíveis? O coordenador da unidade de bioenergia do LNEG explica: “A União Europeia e Portugal apenas promovem o uso de biocombustíveis sustentáveis, pois são aqueles que são classificados de baixo carbono e que contribuem para as metas de descarbonização quer nacionais, quer europeias”.

Em maior pormenor, o potencial de redução das emissões de gases com efeito de estufa dos biocombustíveis promovidos pelo bloco comunitário é de 70% a 90% face ao uso de combustíveis fósseis, como a gasolina, adianta Francisco Gírio. Assim, o especialista entende que, “neste período de transição energética, os biocombustíveis sustentáveis, que são obtidos a partir de resíduos, são a única forma em larga escala de se descarbonizar o setor dos transportes, que é responsável por cerca de 20% a 25% das emissões de gases com efeitos de estufa na União Europeia”.

Numa entrevista recente, Francisco Ferreira, da ZERO, reconhecia que, no que diz respeito aos biocombustíveis, não há “emissões acrescidas que originam o aquecimento global e as alterações climáticas”, pelo que são “preferíveis” aos combustíveis fósseis, mas avisa que há também riscos associados a esta fonte energética, que não podem ser ignorados. “Não faz sentido investirmos mais em biocombustíveis que são provenientes de culturas alimentares”, disse, em linha com a referida carta enviada, entretanto, ao Governo. Francisco Ferreira apelou, deste modo, a que os biocombustíveis sejam utilizados “de forma temporária e muito cuidada” e insistiu que os que competem com as culturas alimentares “deveriam ser abandonados tão rapidamente quanto possível”.

Já a secretária-geral da Associação de Bioenergia Avançada (ABA), Ana Calhôa, considerou, em declarações numa entrevista publicada em fevereiro, que os biocombustíveis são essenciais para a descarbonização dos transportes. Isto porque que são uma solução rápida e de acesso a todos e permite reduzir emissões poluentes. “O essencial é começarmos a reduzir o consumo que temos de combustíveis fósseis e substituí-los por outras fontes de energia”, afirmou a responsável.

De resto, Portugal tem hoje fixada a meta de incorporação de 11% de biocombustíveis relativamente à quantidade de combustíveis rodoviários introduzidos no consumo.

Isabel Patrício
Sustentável

Ler Mais